19.5.04

LIBERALISMO E SOCIALISMO - RESPOSTA AO IRREFLEXÕES



O meu caro camarada do Irreflexões, que não tive ainda o prazer de conhecer senão pela prosa e pelo estilo que de há muito admiro, mergulhou no passado e recordou uma antiga questiúncula que tivemos sobre o paradoxo que é ser simultaneamente socialista e liberal. O Irreflexões, num acto irreflectido que lhe faz jus ao nome, mantém-se na sua: é possível, diz ele, ser de esquerda e liberal.

Em rigor, a posição já não é bem a mesma: já não se trata de ser socialista e liberal, paradoxo evidentemente intransponível, mas de esquerda (seja lá o que isso possa ser) e liberal. Nesta hipótese, a coisa já me parece mais plausível. Mas, não seguramente com os argumentos com que a procura fundamentar.
Porque, ao centrar o problema na liberdade e responsabilidade, no valor do mercado livre ou intervencionado, na problemática da solidariedade e da redestribuição e na função intervencionista correctiva do Estado, o Irreflexões situa-se na periferia do problema e não no seu âmago. Todas as notas que assinalou resultam de algumas questões prévias, são suas consequências e não causas. O problema de fundo, aquilo que distingue o liberalismo do socialismo, e da esquerda em que suponho se situa, é de natureza ontológica e funda-se numa numa problemática sobre a ética humana.

No essencial, a questão pode colocar-se nestes termos: o que pensar das sociedades humanas, da capacidade de conhecer as regras (se as houver) a que obedecem, e quais as possibilidades de um homem, ou de um grupo de homens, sobre elas agirem de forma a determinarem com absoluta segurança as consequências dos seus actos. Estamos, na verdade, em plenos domínios da teoria do conhecimento, dos limites que o homem tem perante si e perante a sua capacidade de saber e de conhecer, para poder, depois, dominar.

Ora o socialismo inscreve-se numa antiga e continuada tradição de exaltação da razão humana, segundo a qual ela não conhece limites. Por isso, Platão defendeu uma «República dos Sábios», da mesma forma que August Comte também subscreveu a necessidade de serem os sábios (aqueles que dominavam as «leis» da ciência e do conhecimento) a governarem. O primeiro, por antecipação, e o segundo, por sucessão, não se situaram longe do racionalismo ilimitado de Descartes e de Francis Bacon, cuja vericitas naturae, ou seja, a doutrina da verdade evidente, pressupunha que ao homem nada estava vedado. Rousseau diz no seu contrato social que «aquele que quiser dominar um povo, tem de modificar a alma humana» (citação livre). Daqui chega-se imediatamente ao construtivismo social, do qual, em grau menor ou menor, fazem parte o pensamento keynesiano/social-democrata, socialista e totalitário: porque quem governa pode tudo conhecer - dizem-nos - pode intervir, seja para corrigir, seja para modificar, seja até, para revolucionar e criar uma nova ordem social. Todos sabemos como estas experiências costumam acabar.

Segundo o liberalismo o problema coloca-se doutra maneira. Tendo consciência da finitude humana (no que o liberalismo é profundamente cristão) e, em consequência, do princípio geral da nossa impotência ou extrema dificuldade em abarcar o mundo envolvente, a atitude liberal é de uma extrema humildade: porque não podemos conhecer a completa dimensão e as consequências dos nossos actos, o melhor será deixar a cada um - aos directos interessados, nomeadamente - a forma de resolverem os seus assuntos. Nesta óptica, o liberalismo não abdica de tentar conhecer. Como lembra bem Karl Popper, o facto de nosso esforço gnoseológico se traduzir, muito provavelmente, para cada um de nós, em ficarmos a saber muito pouco, ainda assim vale a pena tentar conhecer. Esta é, de resto, a natural tendência da humanidade, rumo a um conhecimento que lhe pode facultar uma vida melhor. Sempre conscientes, porém, que qualquer asserção científica só vale pela justa medida em que possa ser refutada. É o método hipotético-dedutivo, como método científico, e a aprendizagem pelo erro, como forma de adquirir conhecimento.

Pelo contrário, o socialismo acredita mesmo que os homens podem conhecer a essência dos fenómenos humanos, e, por isso, dominar o curso dos acontecimentos e da história. Marx era historicista: anteviu (mal) o fim do capitalismo, em resultado de uma interpretação dos factos que era, verdadeiramente, muito limitada. O socialismo acredita mesmo que os governantes são uma espécie de seres alados, sobredotados, com capacidades imensas, que podem dominar o curso das coisas e o andamento da vida em sociedade. Eles são herdeiros da «República dos Sábios» de Platão e de Comte, do despotismo esclarecido iluminista, ainda que, se calhar, não se apercebam bem isso. Seja o novo déspota, o «Senhor da Razão, a «vanguarda do proletariado», a elite dirigente, ou a engenharia financeira correctiva do mercado, eles acreditam mesmo que existem forças «sobrenaturais» a operarem sobre os homens. O socialismo é uma forma de superstição como qualquer outra, a astrologia, por exemplo, ou a leitura do tarot ou das linhas das mãos.

O liberalismo prefere que sejam os homens - verdadeiramente iguais entre si, pressuposto que é liberal e não socialista - a cuidarem dos seus interesses em livre interacção de uns com os outros. A isto, e tão só a isto, se chamou a «mão invisível», de cuja actuação resulta uma «ordem social espontânea» (ordinalismo). Se ela gera injustiças - e gera-as seguramente - serão as que resultam da própria condição humana, da vida do dia a dia em sociedade. Mas elas são, pelo menos, de menor monta do que as que resultam da ingerência de terceiros, de homens dotados de poderes especiais, com os seus interesses próprios e específicos, que intervêm em assuntos que verdadeiramente desconhecem ou não dominam tão bem como os próprios interessados. E podem sempre, por intervenção directa dos interessados, serem reparados ou corrigidos quase sempre a tempo. Isto é o que o liberalismo entende por mercado, conceito tão estranho para os socialistas.

Em conclusão, poderá dizer-se que o liberalismo, apesar de partir do pressuposto da limitação do conhecimento humano, faz profissão de fé nas capacidades humanas do cidadão e do indivíduo. Pelo contrário, o socialismo, sombranceiramente convencido das ilimitadas capacidades do género humano, acaba por passar um atestado de menoridade ao indivíduo, ao retirar-lhe, em todo ou em parte, não interessa, o governo da sua vida e passá-lo para as mãos dos governantes, seres que vá-se lá saber porquê, para os socialistas estão melhor habilitados a resolver problemas que não são seus, do que os directos interessados.

Como vê, meu caro Irreflexões, tudo o mais e principalmente o que refere na sua «posta», são corolários, sem dúvida interessantes, da questão de fundo, que é a de confiar ou não, nas capacidades do indivíduo, apesar (e sobretudo por isso mesmo) de as sabermos muito limitadas. Você, que é socialista, não acredita no indivíduo. Eu, que sou liberal, não acredito senão nos indivíduos, com excepção daqueles que estão no aparelho do Estado, a tratar dos meus assuntos, dos meus interesses, ou seja, da minha vida.