24.10.05

ESQUERDA E DIREITA: UMA CLASSIFICAÇÃO HISTORICAMENTE HIGIÉNICA

Marat, numa das poucas vezes que terá tomado banho...



(esquerda e direita)
Uma pergunta reincidente nos dias que correm é se os conceitos políticos de esquerda e de direita fazem ainda algum sentido, e em qual deles se deve um liberal situar. Eu diria, contudo, que a pergunta está mal feita e deveria ser recolocada no seguintes termos: os conceitos de esquerda e de direita fizeram alguma vez sentido?
Se nos quisermos referir à história da dicotomia, teremos de remontar à Revolução Francesa e à Assembleia Convencional instaurada em 1792, um ano antes do início do «Terror». Sentados na ala esquerda do hemiciclo, Marat, Danton e Robespierre, os jacobinos e a Montanha. Segundo os relatos históricos (e as más línguas), Marat, chefe parlamentar desta temível seita, era uma criatura nauseabunda, pestilenta e que exalava odores terríveis. Isto é, cheirava mal. Ora, a direita parlamentar nasceu, assim, por questões pituitárias: é que, apesar de não serem propriamente criaturas exemplares, os representantes do partido dos girondinos não suportavam o cheiro de Marat e dos seus; vai daí, sentaram-se à direita do hemiciclo, o mais longe possível da nauseabunda criatura. Esta foi, diga-se, a primeira ruptura ideológica entre esquerda e direita. O motivo é compreensível, embora não se possa afirmar que o acto fundador tenha sido pleno de significado político e especulativo.
Daí em diante, nem sempre se conseguiu estabelecer uma fronteira razoável entre o que possam ser a direita e a esquerda. Aliás, nas suas manifestações históricas mais impressivas, elas convergem invariavelmente no pior: ambas são frequentemente defensoras de Estados fortes, intervencionistas e correctores dos desequilíbrios sociais. Quando, ainda na primeira metade do século XX, entraram as doutrinas keynesianas na ordem do dia, a esquerda e a direita democráticas reviram-se nelas e aplicaram-nas entusiasticamente, criando com isso Estados monstruosos e verdadeiramente asfixiantes da liberdade individual e social. As suas variáveis não democráticas tinham, de resto e desde há muito, resolvido esse dilema, substituindo qualquer princípio de liberdade individual pelo colectivismo. O problema da maior ou menor intervenção não se punha, por conseguinte, nem para o comunismo, nem para o fascismo: o que interessava era o Estado, um Estado forte, fortíssimo, esmagador, fosse o seu fundamento o colectivismo proletário ou o nacionalismo e o racismo.

(direita e esquerda)
Em que divergem, então, historicamente a direita e a esquerda? Mais uma vez, pelas piores razões.
Tradicionalmente, a esquerda vinca os seus aspectos distintivos na defesa do republicanismo, enquanto manifestação de antagonismo à monarquia, da laicidade, enquanto comportamento persecutório das Igrejas, sobretudo da de Roma, pelos representantes do Estado, no ataque à propriedade privada, símbolo e origem de todos os males sociais, embora, neste último caso, nem sempre a direita a deixe sozinha. É igualitária, considerando a igualdade como uma resultante e não como um pressuposto social: a ter de nivelar, prefere fazê-lo por baixo do que por cima. Mais recentemente, alguma esquerda tem vindo a propor «causas fracturantes»: o aborto, a eutanásia, a liberalização da droga, as opções sexuais homossexuais, etc. Fazem-no, dizem eles, em nome da liberdade política. Não percebem que se tratam de questões de ordem moral e individual (para a esquerda tudo emana e regressa ao «colectivo») e, por conseguinte, não devem ser parte de programas políticos porque, em bom rigor, a ordem política não tem que se meter nelas.
Quanto à direita, ela tem vincado a defesa da autoridade (sempre corporizada por alguém que ocupa e manipula o aparelho de Estado), surge frequentemente encostada à Igreja, concedendo-lhe, mesmo que modernamente, os mais incompreensíveis favores, como sucedeu ainda há pouco tempo em Portugal com a concessão de um canal televisivo ao Vaticano. É beata, muito frequentemente monárquica, por defesa da autoridade do Rei e por oposição ao «desregramento» republicano, marialva e pretensiosamente elitista. Não acha a igualdade social uma coisa recomendável, embora se apiede muito dos pobrezinhos e proponha o Estado (onde gosta de estar sentada) como agente corrector. Não gosta do aborto, embora o pratique abundantemente (o que a lança numa tortura existencial que não consegue diagnosticar, menos ainda resolver), ataca os comportamentos sexuais «desviantes», ainda que, na intimidade, nem sempre lhes ofereça resistência, incomoda-se muito com os doentes terminais, mas acha que só a Deus é legítimo pôr fim à vida, e diz que a droga tem de ser reprimida, apesar de gastar fortunas com as desintoxicações dos filhos.
Nos últimos anos, graças ao desmoronamento do Bloco Soviético e ao desenvolvimento da União Europeia, trocaram de posições: a esquerda abandonou o internacionalismo proletário e tornou-se patriótica, quando não nacionalista, e, em contrapartida, a direita, que tem absorvido bem Maastricht, esqueceu o paradigma das fronteiras e já se aparenta cosmopolita. Porém, em lugar do que podia e devia ser um genuíno empenhamento na defesa do reforço da liberdade individual (que, na verdade, o processo comunitário de integração poderá trazer), o que a direita pretende é mais subsídios, mais apoios supra-estatais e uma melhor coordenação da autoridade isto é, acumular um super-Estado com o seu próprio Estado.
Curiosamente, sobre a liberdade individual, a verdadeira, aquela em que nem o Estado, nem a política se devem imiscuir, o totalitarismo estatal, a ingerência progressiva e asfixiante do Estado na sociedade, os custos (não meramente financeiros) que esse domínio comporta, a subversão da democracia, sobre isto, parecem pouco preocupadas actualmente e ao longo da História, a esquerda e a direita.
Por isso, o liberalismo não pode enquadrar-se num lado ou no outro. Não é, ao contrário do que alguns pensam, por colher argumentos numa noutra partes: é porque tem uma perspectiva das coisas e do que verdadeiramente é importante para o indivíduo, a sociedade e a política, que a esquerda e a direita não são capazes de atingir. Não está ao centro, entre ambas, nem mais próximo de uma do que de outra: está por cima.
Se fosse possível perguntar a um velho whig do século XVII ou XVIII, ou a Locke, a Adam Smith, a Hume, a Tocqueville ou a Burke se eram de esquerda ou de direita, muito provavelmente não perceberiam a pergunta. E nem lhe dariam resposta. A não ser, claro está, que lhes fosse apresentado o camarada Marat...