24.11.06

todos os outros


Numa sociedade onde um dos principais traços de carácter dos seus cidadãos é o individualismo do menino-mimado, o Estado acabará por se tornar, a prazo, a instituição central da vida humana - e uma instituição razoavelmente despótica.###

O menino-mimado possui, em geral, uma ideia elevada de si próprio e não reconhece limites aos seus méritos, às suas capacidades e aos seus talentos. Para ele, a vida só está bem quando ele está bem, irrespectivamente da situação em que se encontram todos os outros. Ele é o credor permanente da sociedade, todos lhe devem e ninguém lhe paga.

Tendo chegado ao mundo e observado à sua volta um acervo considerável de bens e riqueza material, ele nunca se interroga sobre os segredos que a tornaram possível. Para ele, a criação de riqueza é um dado. O grande problema da vida consiste em como distribuí-la.

Olhando em redor, ele vai descobrir que muitos dos seus concidadãos possuem mais do que ele - cidadãos a quem ele não reconhece méritos particulares, certamente que não iguais aos seus - e isso alimenta-lhe o ressentimento. A inveja passa a ser um traço distintivo das sociedades onde prevalece o individualismo do menino-mimado.

E se muitos dos seus concidadãos possuem mais do que ele, só pode haver uma razão: eles apropriaram-se indevidamente da parte que lhe pertence. Tudo aquilo que ele não tem e julga que deveria ter é o resultado directo da desonestidade dos outros, da ganância dos outros, da falta de escrúpulos dos outros.

Por isso, na sociedade onde prevalece o individualismo do menino-mimado todo o diálogo social se torna, a prazo, impossível: ninguém gosta de ninguém (excepto de si próprio), todos desconfiam de todos (excepto de si próprios), todos se abusam uns aos outros (excepto a si próprios) tornando a vida em sociedade uma experiência deprimente.

Nesta sociedade, as pessoas, por vezes, associam-se, não para prosseguirem fins comunitários, mas para realizarem interesses económicos os mais imediatos ou para se defenderem das agressões de outros grupos igualmente organizados. A sociedade onde prevalece o individualismo do menino-mimado torna-se, a prazo, uma sociedade balcanizada e em conflito permanente.

Para repôr a justiça na distribuição da riqueza e a ordem na sociedade, o único caminho possível é o apelo à autoridade. Por isso, nas sociedades onde prevalece o individualismo do menino-mimado os cidadãos tendem a ser estatistas. Na realidade, o Estado passa a ser o tema central das suas vidas e a conquista de alguma posição na hierarquia do Estado a sua maior ambição.

Hoje, uns cidadãos reclamam a acção do Estado para conter a falta de escrúpulos e os alegados abusos das empresas e dos empresários - a classe que, pelo seu estatuto económico, é o alvo preferencial do seu ressentimento - e, nessa reclamação, estão prontos a subscrever todas as medidas do Estado, mesmo aquelas que atropelam direitos de cidadania essenciais, desde que não sejam os deles.

Amanhã, outros cidadãos, uns de cada vez, reclamam a acção do Estado para preencher cada um dos espaços da vida social que são deixados vazios pelo seu egoísmo radical - na saúde, na educação, na assistência aos pobres, no desemprego, na reforma, nos cuidados do ambiente -, e também aqui todas as medidas são válidas e podem até afectar interesses legítimos de outros cidadãos, desde que não afectem os deles.

No limite, a sociedade onde prevalece o individualismo do menino-mimado conduz a um Estado autoritário, plenamente discricionário, omnipresente, sufocante de toda a iniciativa humana. Porém, este estatismo, apesar da sua retórica por vezes socialista, não possui qualquer espírito de solidariedade e menos ainda de comunidade. Pelo contrário, ele é o resultado de um individualismo radical - o individualismo do menino-mimado - onde, em última instância, o Estado é visto como um instrumento através do qual cada um espera poder viver à custa de todos os outros, e irrespectivamente daquilo que aconteça a todos os outros.